quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A mobilização de um contra-antídoto: a confusão da vertigem com êxtase



Se tomamos estas três medidas, seremos livres apesar da manipulação. Mas aqui surge um grave perigo: quem deseja dominar-nos está pondo em jogo um contra-antídoto, que consiste em confundir dois grandes processos de nossa vida: o da vertigem e o do êxtase. Se caímos nesta armadilha, perderemos definitivamente a liberdade.

A vertigem é um processo espiritual que começa com a adoção de uma atitude egoísta. Se sou egoísta na vida, tendo a considerar-me como o centro do universo e a tomar tudo o que me rodeia como meio para meus fins. Quando me encontro com uma realidade -por exemplo, uma pessoa- que me atrai porque pode saciar meus apetites, me deixarei fascinar por ela. Deixar-se fascinar por uma pessoa significa deixar-se arrastar pela vontade de dominá-la para pô-la a meu serviço. Quando estou a caminho de dominar aquilo que inflama meus instintos, sinto euforia, exaltação interior. Parece que estou para obter uma rápida e comovedora plenitude pessoal. Mas essa comoção eufórica degenera imediatamente em decepção, porque, ao tomar uma realidade como objeto de domínio, não posso encontrar-me com ela, e não me desenvolvo como pessoa. Lembremos que o homem é um ser que se constitui e desenvolve através do encontro. Essa decepção profunda me produz tristeza. A tristeza sempre acompanha a consciência de não estar a caminho do desenvolvimento como pessoa. Essa tristeza, quando se repete uma e outra vez, se torna envolvente, asfixiante, angustiante. Vejo-me esvaziado de tudo o que necessito para ser plenamente homem. Ao vislumbrar esse vazio, sinto vertigem espiritual, angústia.

Se o sentimento de angústia é irreversível porque não sou capaz de mudar minha atitude básica de egoísmo, a angústia dá lugar ao desespero: a consciência lúcida e amarga de que tenho todas as saídas fechadas para minha realização pessoal.

Um jovem estudante um dia se esforçou em convencer uma amiga viciada em drogas  de que ela estava se destruindo. Ela o interrompeu e disse com desalento: "Não perca seu tempo. Sei perfeitamente que estou à beira do abismo. O que acontece é que não posso voltar atrás, o que é muito diferente". Esta consciência de não ter saída é o desespero. O desespero leva rapidamente à destruição, própria ou alheia, física ou moral. (Digamos entre parêntesis que este processo se refere àqueles que em perfeito estado de saúde se entregam ao afã de possuir o que deslumbra os próprios apetites, não àqueles que sofrem algum tipo de depressão por motivos fisiológicos).

Resumindo: a vertigem não exige nada no princípio, promete tudo e tira tudo no final. A vertigem te enche de ilusões (ilusiones) e acaba convertendo-te num iludido.

Vejamos agora o processo oposto: o do êxtase ou criatividade. Se não sou egoísta, mas generoso, não reduzo o que me rodeia a meio para meus fins. Eu sou um centro de iniciativa, mas você também o é. Por isso lhe respeito como você é e no que você está chamada a ser. Este respeito me leva a colaborar com você, não a lhe dominar. Colaborar é articularminhas possibilidades com as suas. E esta articulação é o encontro. Ao encontrar-me, desenvolvo-me como pessoa e sinto alegria. Esta alegria, em seu grau máximo, se chama entusiasmo. Entusiasma-me encontrar realidades que me oferecem tantas possibilidades de agir criativamente que me elevam ao melhor de mim mesmo. Essa elevação é o êxtase. Quando me sinto próximo à realização de minha vocação mais profunda, experimento uma grande felicidade interior. Esta felicidade me leva à construção de minha personalidade, da minha e as daqueles que se encontram comigo. Aqui está um dado decisivo: No processo de êxtase o encontro cria vida de comunidade. O processo de vertigem a destrói.

O êxtase é um processo espiritual que ao princípio exige de você por inteiro, lhe promete tudo e ao final lhe dá tudo. O que é que exige no princípio? Generosidade. Você não encontrará nem uma só ação que seja criativa no esporte, na vida de relação, na vida estética ou religiosa que não tenha em sua base alguma dose de generosidade. Se você for egoísta ao praticar esporte, você reduzirá o jogo a mera competição, que é uma das formas de vertigem da ambição. Você vai tomar os companheiros de jogo como meios para seus fins. Você não construirá unidade mas dissensão, e vai gerar violência. 

Ficam claras as conseqüências da vertigem e do êxtase:

·                     A vertigem anula pouco a pouco a criatividade humana -porque impossibilita o encontro, e toda forma de criatividade ocorre no homem através da construção de diversos modos de encontro-, diminui ao máximo a sensibilidade para os grandes valores, torna impossível a construção de formas elevadas de unidade.

·                     O êxtase, ao contrário, incrementa a criatividade, a sensibilidade para os grandes valores, a capacidade de unir-se de forma sólida e fecunda com as realidades ao redor.

Agora podemos responder lucidamente à pergunta que deixamos pendente. Dizíamos que o tirano domina os povos reduzindo as comunidades a meras massas. Faz isso minando a capacidade criadora de cada uma das pessoas que constituem tais comunidades. Este empobrecimento das pessoas se consegue orientando-as para diversas formas de vertigem não para o êxtase. Para isso o demagogo manipulador confunde ambas as formas de experiência, e diz às pessoas, sobre tudo aos jovens: "Concedo a vocês todo tipo de liberdades para realizarem experiências exaltantes de vertigem. Essa exaltação é a verdadeira forma de entusiasmo, e conduz à felicidade e à plenitude".

Se caímos nesta armadilha ardilosa, não teremos futuro como pessoas. Vertigem e êxtase são polarmente opostos em sua origem -que é a atitude de egoísmo, por um lado, e a de generosidade, por outro- e são diferentes em seus fins: A vertigem tende ao ideal de dominar e  desfrutar; o êxtase se orienta para o ideal da unidade e solidariedade. Confundir ambas as experiências significa projetar o prestígio secular das experiências que os gregos denominavam êxtase -elevação ao que há de melhor em si mesmo- sobre as experiências de vertigem e dar uma justificação aparente às práticas que conduzem o homem a formas de exaltação aniquiladora.

Nossa vontade de sobrevivência como seres pessoais nos leva a perguntar se há um antídoto contra a confusão entre vertigem e êxtase. Afortunadamente, há, e se baseia na convicção de que o ideal é que decide tudo em nossa vida. Somo seres dinâmicos, devemos configurar nossa vida de acordo com um ideal; temos liberdade para assumir um ideal ou outro como meta da existência, impulso e sentido de nosso agir, mas não podemos evitar que o ideal do egoísmo e de domínio nos exalte primeiro e nos destrua ao final, e que o ideal da generosidade e de unidade nos exija no princípio um grande desprendimento e nos dê a plenitude no final. O fato de orientar a vida para este ideal plenificante nos impulsiona a escolher em cada momento o que é mais adequado para nosso verdadeiro ser. Esta liberdade interior nos imuniza em boa medida contra a manipulação.

0 comentários:

Postar um comentário